Esta é a primeira versão de uma biografia curtinha que fiz para a revista Carpe Diem no ano passado. Apesar de ter publicado outra versão, prefiro esta, que posto hoje, dia em que se completam 14 anos de sua morte.
Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? Sua vida passou. Mas as palavras de Caio Fernando Abreu, depois desses meses todos, que agora já viraram mais de década - não passaram. E não vão, ora sutis, ora pesadas, mas tão belas que sabem ser.
Caio nasceu em 1948 no interior do RS e se mudou, jovem, para Porto Alegre, onde cursou Letras e Artes Cênicas, sem concluir nenhuma delas, preferia passar pelas coisas como num vôo, num mergulho sem método, mas nem por isso menos alto e profundo.¹ Foram estas, no entanto, as duas direções que tomou na vida. Trabalhou como jornalista algumas vezes, mas não gostava da pressão nem da rotina e, quando pôde, viveu apenas de seus contos (publicados sempre em coletâneas que seguiam um fluxo temático) e romances de ficção. Quanto ao teatro, que amava, escreveu poucas peças, mas sua obra literária, por si só muito teatral, foi inspiração para muitas.
Sim, existir é incompreensível e excitante. As vezes que tentei morrer foi por não poder suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e fazer aquilo que eu gosto - mesmo que muitos não compreendam ou não aceitem. Assumiu tudo o que fez ou escreveu, encarando as escolhas como escolhas apenas, sem forçar o choque. Inclusive a homossexualidade, que influenciou grande parte de sua literatura (mas não limitou-a, escreveu sobre pessoas, de todos os feitios). Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade - voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. Caio F., como é chamado por intelectuais (que às vezes completam o trocadilho, “o primo da Cristiane F.”), chocava, sim, mas por retratar, crua – mas não friamente - aquela geração que, depois da falha da contra-cultura, viu a falência dos seus ideais e sentia-se perdida, fugia através do álcool, das drogas, do sexo. Colhemos cogumelos pelos montes e sabemos que o mundo não vale a nossa lucidez. E criticava, muito. A mania que as pessoas têm de só colocar a felicidade no fim da vida, depois de terem ganhado dinheiro, e de enclausurarem as escolhas dentro de um padrão, por exemplo. É fácil, magro, tu desdobra numa boa: primeiro procura apartamento, depois trabalho, depois escola, depois, se sobrar tempo, amor. Criticou a ditadura, foi perseguido pelo DOPS e refugiou-se na casa de campo de Hilda Hilst, depois na Europa, passando a maior parte do tempo na França e na Inglaterra.
Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder. A frase de Cazuza bem poderia estar em um de seus contos: fazia sempre referências e, muitas vezes, reverências às artes. Música e cinema, principalmente. Muitas vezes, era autobiográfico. Permitia-se apenas esse medo: o de estar sozinho. Teve muitos amigos e amou muito, mas os amores não costumavam dar certo. Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito nutro & relacionamento & rompimento & afeto, teria dito também estima & consideração & mais alto apreço e toda essa merda educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado. Daí, talvez, o seu sofrimento, talvez daí a desilusão, a melancolia que acompanha seus textos. Justamente por isto, talvez, mais tocantes. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que “desse certo”, caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. E ele amava, talvez por ter sido virginiano, essas miudezas mágicas. Como os encontros. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.
Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Caio disse que amor matava. Era frágil, sensível, mas ao mesmo tempo pungente. Talvez por isso tenha merecido o apelido de “Ney Matogrosso da literatura brasileira". No começo dos anos '90, contraiu AIDS – a doença do amor, e voltou ao Brasil para realizar um de seus sonhos – ser um jardineiro. Amor mata, amor mata, amor mata. Morreu de amor.
¹Luiz Arthur Nunes, prefácio ao "Teatro Completo" de Caio Fernando Abreu.
Todas as outras citações são de Caio.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
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Um comentário:
(claro que pode Amanda, vou ficar muito feliz com vc me visitando! eu ja havia visitado o seu outras vezes. Também gosto bastante)
Beijo!
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